As empresas brasileiras vêm sofrendo os impactos de uma crise econômica sem precedentes, acarretando-lhes grandes dificuldades financeiras. Em 2015, a economia brasileira já dava sinais de uma aguda fragmentação marcada pelo baixo crescimento, a alta do dólar e níveis elevados de inflação. A instabilidade política em razão do processo de impeachment da ex-presidente da república, decisões judiciais paradoxais envolvendo figuras políticas do mais alto escalão da administração pública envolvidos na “lava jato”, criou um ambiente hostil resultando na redução de investimento estrangeiro, com a consequente contração da economia brasileira.
Em 2020, instaura-se um novo cenário na sociedade brasileira, a COVID-19, que transpôs as barreiras territoriais e, seus efeitos atingem financeiramente toda gama da sociedade, limitando a capacidade das empresas e indivíduos adimplirem os compromissos firmados e, por enquanto, não há uma timeline para tudo isso terminar.
E não só, os desafios enfrentados pela saúde pública, a paralisação da economia vem causando sérias dificuldades para muitas empresas pagar as suas dívidas. Pois, o cenário econômico é desesperador se levarmos em consideração os dados divulgados pelo Banco Central, o qual prevê uma redução do PIB brasileiro em 3,34%.
À vista disso, os instrumentos legais de recuperação de empresas ganham força face às necessidades de reestruturação e superação da crise financeira, restando como única saída recorrer aos procedimentos da Lei de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência nº 11.101/2005.
O instituto da Recuperação Judicial e Extrajudicial foi uma inovação, instituído no ordenamento jurídico brasileiro com criação da Lei 11.101/2005. O artigo 481Nota 1Art. 48. Poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos e que atenda aos seguintes requisitos, cumulativamente: I – não ser falido e, se o foi, estejam declaradas extintas, por sentença transitada em julgado, as responsabilidades daí decorrentes; II – não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial (...). estabelece os requisitos norteadores da condução de todo o processo recuperacional, atuando como ferramenta que proporciona a possibilidade à empresa para reerguer.
Conforme leciona MARIO GHINDINI, a empresa é uma organização produtiva de suma relevância social. Segundo ele: “Essa deve ser salvaguardada e defendida, enquanto: constitui o único instrumento de produção de (efetiva) riqueza; constitui o instrumento fundamental de ocupação e de distribuição de riqueza; constitui um centro de propulsão do progresso, também cultural, da sociedade”.2Nota 2PERIN, JR, Ecio.. Preservação da Empresa na lei de Falências. São Paulo: Saraiva: 2009, p. 34.
A lei e a doutrina enfatizam a preservação da empresa, ressaltando a sua função social, valorizando o seu papel como fonte produtora de riquezas, de empregos e de desenvolvimento da nação.
No mesmo sentido, MANOEL JUSTINO BEZERRA FILHO, afirma que: “A Lei, não por acaso, estabelece uma ordem de prioridades na finalidade que diz perseguir, ou seja, colocando como primeiro objetivo a ‘manutenção da fonte produtora’, ou seja, a manutenção da atividade empresarial em sua plenitude tanto quanto possível, com o que haverá possibilidade de manter também o ‘emprego dos trabalhadores’. Mantida a atividade empresarial e o trabalho dos empregados, será possível então satisfazer os ‘interesses dos credores”.3Nota 3BEZERRA FILHO, Manuel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e Falência Comentada. 6ª Ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2009. p. 123.
A preocupação da preservação da empresa conferida pelo legislador, está em consonância com os princípios constitucionais que regem a atividade econômica nos termos do 170 de nossa Constituição Federal, à medida que valoriza o trabalho humano e a livre iniciativa, garantindo que a empresa atinja a sua função social.
Em outras palavras, as empresas guardam grande interesse social, como polo produtivo de fomento da economia, haja vista que, por meio delas os bens e serviços são distribuídos para atender às demandas de consumo interno e externo, gerando reflexos positivos na balança de pagamentos, fundamental para a economia.
A bem da verdade, trata-se de pura cadeia produtiva. Ao serem mantidos em postos de trabalhos, os colaboradores funcionam como mola propulsora da economia, na medida em que, ao adquirirem os bens e serviços são tributados, o Estado arrecada riquezas.
A Recuperação Extrajudicial é uma espécie de acordo firmado entre um devedor e os seus credores, para que, de alguma forma, seja facilitado a quitação de todas as dívidas pendentes entre as partes. Uma das características principais da Recuperação Extrajudicial é a concordância dos credores, pois, caso a Recuperação Extrajudicial seja pactuada, seus créditos sofrerão uma mutação chamado de “novação”.
Quando uma empresa em crise financeira instaura um processo de Recuperação Extrajudicial há a negociação de suas dívidas com os credores, que resultam em descontos chamados de haircut, objetivando receber o pouco dentro de um lapso temporal razoável ao invés de nada.
A nova lei de Falência e Recuperação Judicial e Extrajudicial vetou a isenção de impostos nos descontos negociados com credores. A lei 14.112/2020 foi publicada no fim de dezembro após aprovação da matéria no Senado, permitindo a cobrança de PIS, Cofins, imposto de renda e CSLL decorrente desse desconto.
Em toda negociação, existe a possibilidade de os credores se insurgirem com os termos do acordo e apresentarem recursos questionando as mais diversas matérias (valores, prazos etc.), podendo tais recursos terem ou não efeito suspensivo. Com isso, não há clareza pela leitura fria da lei, se enquanto perdurar o recurso isso poderia justificar ou não o diferimento do reconhecimento do ganho tributável.
Cabe inicialmente fazer uma exegese da lei que nos permite distinguir dois grupos de credores quando se trata da Recuperação Extrajudicial para efeitos do reconhecimento do ganho tributável. Por um lado, temos os credores signatários e aderentes, isto é, aqueles que voluntariamente se submetem ao Plano (antes, durante e após o ajuizamento da recuperação extrajudicial); e os credores dissidentes aqueles que não aderem ao Plano e que são vinculados “levados” em razão do quórum, na forma do artigo 163, da lei de falência e recuperação judicial e extrajudicial.4Nota 4Art. 163. O devedor poderá também requerer a homologação de plano de recuperação extrajudicial que obriga todos os credores por ele abrangidos, desde que assinado por credores que representem mais da metade dos créditos de cada espécie abrangidos pelo plano de recuperação extrajudicial.
Portanto, em relação aos credores signatários e aderentes, a receita oriunda da aprovação do plano deve integrar o resultado contábil e tributário na “Data-Base”, ou seja, data da apuração do valor dos créditos abrangidos para efeitos do Plano, sob a ótica de que, tais credores abriram mão da prerrogativa estatuída no artigo 165, §2º, da lei de falência e recuperação judicial e extrajudicial.
Para os credores dissidentes, os efeitos contábeis e fiscais deveriam repercutir na homologação definitiva do Plano, desde que haja certeza absoluta acerca da materialização da liberação da dívida, que só ocorre por meio de sentença transitada em julgado.
Nos parece razoável argumentar que, independentemente da concessão, ou não, de efeito suspensivo aos eventuais recursos interpostos e ainda que o objeto desses recursos exclua a discussão do valor do crédito detido pelo credor dissidente, a sua interposição coloca em dúvida se o Plano de Recuperação Extrajudicial operara efeitos em relação a estes.
No plexo contábil, essa incerteza inibe o reconhecimento da receita decorrente o haircut da obrigação, por haver um paralelismo no grau de segurança considerado satisfatório para o não reconhecimento e reconhecimento de ativos contingentes. Sendo assim, não havendo certeza da ocorrência acréscimo patrimonial derivado do não reconhecimento da obrigação, não deveria haver incidência tributária sobre a receita cujo reconhecimento é incerto.
Não obstante a robustez dos argumentos jurídicos que substanciam a tese e a jurisprudência em situações vivenciadas por nós, em razão da ausência de súmulas, decisões judiciais dirigidas, especialmente ao momento da realização do acréscimo patrimonial oriundo do haircut em situações equivalentes, acreditamos ser um vácuo legal que o poder legislativo e judiciário precisam sanar.
Mister se faz, destacar com a necessária ênfase, que o Regulamento do Imposto de Renda (RIR/18), aprovado pelo Decreto nº 9.580/18), determina que a apuração do lucro líquido, ponto de partida para apuração do IRPJ, seja efetuada de acordo com os preceitos da lei comercial, ou seja, a Lei das Sociedades por ações (Lei nº 6.404/76,), determina em seu artigo 177, o seguinte:
A escrituração da companhia será mantida em registros permanentes, com obediência aos preceitos da legislação comercial e desta Lei e aos princípios de contabilidade geralmente aceitos, devendo observar métodos ou critérios contábeis uniformes no tempo e registrar as mutações patrimoniais segundo o regime de competência.
E mais, o IAS15Nota 5International Accounting Standards. incorporado no Brasil por meio do Pronunciamento Técnico 26 do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (“CPC 26”)6Nota 6A atual redação do CPC 26 foi aprovada pela CVM por meio da Deliberação CVM nº 676/2011. é expresso ao afirmar que as demonstrações contábeis devem ser elaboradas utilizando-se do regime de competência (item 27). Por sua vez, o item 28 determina que o reconhecimento de lançamentos por meio do regime de competência deve seguir a metodologia prevista na Estrutura Conceitual para Elaboração e Divulgação de Relatório Contábil-Financeiro (0), encontrada no Pronunciamento 00 (“CPC 00”)7Nota 7A atual redação do CPC 00 foi aprovada pela CVM por meio da Deliberação CVM nº 675/2011., em cujo item 4.38 dispõe:
um item que se enquadre na definição de um elemento deve ser reconhecido se: (a) for provável que algum benefício econômico futuro associado ao item flua para a entidade ou flua da entidade; e (b) o item tiver custo ou valor que possa ser mensurado com confiabilidade, assim entendida como a informação completa, neutra e livre de erro.
Notadamente, sobre o reconhecimento de receitas, o CPC 00, item 4.47 aduz o quanto segue:
A receita deve ser reconhecida na demonstração do resultado quando resultar em aumento nos benefícios econômicos futuros relacionado com aumento de ativo ou com diminuição de passivo, e puder ser mensurado com confiabilidade. Isso significa, na prática, que o reconhecimento da receita ocorre simultaneamente com o reconhecimento do aumento nos ativos ou da diminuição nos passivos (por exemplo, o aumento líquido nos ativos originado da venda de bens e serviços ou o decréscimo do passivo originado do perdão de dívida a ser paga).
Do ponto de vista contábil e fiscal, não resta dúvida que o reconhecimento da receita derivada da dívida objeto da Recuperação Extrajudicial deve ocorrer concomitantemente ao reconhecimento dessa diminuição de passivos, o que deverá ser tomado como tendo ocorrido, como nos referimos, (i) no caso dos credores signatários e aderentes, o reconhecimento ocorre com a celebração do acordo (Plano) e protocolo do correspondente pedido de homologação; (ii) com relação aos credores dissidentes, que interpõem recursos, após o transito em julgado da sentença que homologatória do plano de Recuperação Extrajudicial.