Introdução
Em um contexto normativo cada vez mais influenciado pelas normas gerais antiabuso no campo tributário (BEPS, DAC/UE etc.), precisamos com certa frequência identificar como as autoridades ficais têm descaracterizado atos e negócios jurídicos sob alegação de configurarem planejamento tributário abusivo.
Assim, o presente artigo propõe-se a descrever os atuais contornos legais do que é comumente apontado como norma geral antielisiva (GAAR, ou General Antiabuse Rule) na legislação brasileira.
Para isso, seguiremos o seguinte curso de análise: (i) da existência ou não de GAAR no Direito Tributário Brasileiro; (ii) definição de ato ou negócio jurídico nulo (Código Civil); e (iii) conclusão.
Da (in)existência de GAAR no direito tributário brasileiro
A existência de uma norma geral antielisiva no Direito brasileiro é, ainda hoje, objeto de debate.
Ao passo que as autoridades fiscais usualmente adotam “abuso de direito” ou “ausência de propósito negocial”, dentre outras doutrinas e conceitos geralmente absorvidos do Direito Privado, como justificativa para lançamentos tributários, o artigo de lei que permite a descaracterização, pelo Fisco, de atos e negócios jurídicos possui eficácia meramente contida, isto é, não pode ser aplicado de forma direta, sem a devida regulamentação por outra norma.
No caso, tratamos do artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, que dispõe que “A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.”.
Ao condicionar sua aplicabilidade à observância dos “procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”, o artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional determina que, inexistentes no ordenamento jurídico tais regulamentações, não pode ser aplicada pelo intérprete.
Tal posição veio a ser corroborada, recentemente, pela interpretação dada pela Ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, em seu voto proferido no julgamento ainda (em andamento) da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 2.446, que tem por objeto justamente a alegação de incompatibilidade do artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, com a Constituição Federal.
Segundo a Ministra, embora o artigo mencionado não seja inconstitucional, por não ofender os princípios da estrita legalidade tributária e da separação dos poderes, sua eficácia é, diz a Ministra, contida, demandando a existência de uma lei que, até o presente momento, ainda não foi editada pelo Poder Legislativo.
Entretanto, a existência dessa restrição formal ganhou força apenas mais recentemente, depois que muitas autuações baseadas em abuso de direito ou ausência propósito negocial foram lavradas pelas autoridades e, uma vez contestadas, mantidas pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF).
O CARF, é importante lembrar, chegou a adotar posicionamentos contrários à aplicação desses conceitos, mesmo na vigência do artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional. Contudo, passou, cada vez mais, a confirmar a rigidez das autuações em planejamento tributário supostamente agressivo.
Por exemplo: em um caso julgado pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF, órgão máximo na solução de litígios tributários na esfera federal), um contribuinte havia efetuado uma cisão parcial mediante integralização, na empresa resultante da cisão, de patrimônio imobiliário classificado em seu ativo permanente. Como a cindenda teria por atividade econômica a exploração da compra e venda de imóveis, o imóvel integralizado pela cindida foi classificado como bem do ativo circulante, possibilitando que, na futura venda, incidisse menor tributação do que se a empresa cindida tivesse alienado o imóvel diretamente a um terceiro.
Nesse caso (acórdão 9101-002.429, de 18 de agosto de 2016), a Câmara Superior de Recursos Fiscais do CARF manteve, por maioria, a notificação de lançamento fiscal, sob alegação de que, na existência de mais de uma forma possível para concretizar a venda, teria o contribuinte eleito a modalidade que apresentava menor carga tributária sem, no entanto, comprovar a existência de “propósito negocial”.
Contudo, o Poder Judiciário revisou e anulou o auto de lançamento. Como fundamento, e em homenagem ao tema ora pertinente – “GAAR no Direito Tributário Brasileiro” -, transcreve-se o excerto a seguir, extraído do acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (“Apelação/Remessa Necessária Nº 5009900-93.2017.4.04.7107/RS”, com grifos acrescidos):
“Diz-se ser esse o ponto nodal para a solução do imbróglio justamente porque os órgãos fiscais, partindo da aparente pouca especificidade que marcaria a normatização do assunto no Direito brasileiro -erro evidenciado pelo apelido dado ao artigo 116, parágrafo único, do CTN: ‘norma geral antielisiva’ -, entendeu possuir um salvo-conduto para o estabelecimento de critérios próprios para aferição do que seria um ‘planejamento tributário abusivo’ -como é o caso da tal ‘ausência de propósito negocial’- residindo a controvérsia exatamente em saber se o Fisco tem ou não competência para agir dessa maneira”.
Com isso, segundo o acórdão, as autoridades fiscais não podem utilizar o disposto no artigo 116, parágrafo único para, atribuindo-lhe significados não definidos em lei (como “propósito negocial” ou “substância econômica”), desconsiderar atos e negócios jurídicos válidos e eficazes.
Diferentemente, devem as autoridades fiscais imputar de forma comprovada ao contribuinte uma conduta antijurídica, isto é, a celebração de um ato ou negócio jurídico nulo, imputação essa que não se sustentará sem a necessária prova.
Nesse sentido, transcreve-se a seguir julgado de 2015 (anterior, portanto,) em que o CARF, desta vez julgando caso envolvendo a formação de ágio (goodwill), estabeleceu parâmetros mais próximos daqueles que o Judiciário veio a reconhecer no caso anteriormente citado. Veja-se:
“(…) DIREITO TRIBUTÁRIO. ABUSO DE DIREITO. LANÇAMENTO. Não há base no sistema jurídico brasileiro para o Fisco afastar a incidência legal, sob a alegação de entender estar havendo abuso de direito. O conceito de abuso de direito é louvável e aplicado pela Justiça para solução de alguns litígios. Não existe previsão de o Fisco utilizar tal conceito para efetuar lançamentos de ofício. O lançamento é vinculado a lei, que não pode ser afastada sob alegações subjetivas de abuso de direito.
SIMULAÇÃO DE NEGÓCIOS. O planejamento tributário que é feito segundo as normas legais e que não configura as chamadas operações sem propósito negocial, não pode ser considerado simulação se há não elementos suficientes para caracterizá-la.
SIMULAÇÃO. SUBSTÂNCIA DOS ATOS. Não se verifica a simulação quando os atos praticados são lícitos e sua exteriorização revela coerência com os institutos de direito privado adotados, assumindo o contribuinte as consequências e ônus das formas jurídicas por ele escolhidas, ainda que motivado pelo objetivo de economia de imposto.
SIMULAÇÃO. NEXO DE CAUSALIDADE. A caracterização da simulação demanda demonstração de nexo de causalidade entre o intuito simulatório e a subtração de imposto dele decorrente. (…) (Acórdão n. 1402-001.954 no processo 10980.726073/2013-15. Rel. PAULO ROBERTO CORTEZ. Julgado em 25/03/2015. Publicado em 02/07/2015.)”
Assim, é possível extrair que, mesmo geralmente apontada como “GAAR” no direito brasileiro, não é possível considerar a norma do artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional de tal forma que, sem uma conduta comprovadamente antijurídica por parte do contribuinte, as autoridades fiscais possam descaracterizar atos e negócios jurídicos válidos e eficazes, inclusive no contexto de determinado planejamento tributário.
Da definição de ato ou negócio jurídico nulo
A despeito do debate em torno de ser, o artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, a GAAR do Direito Brasileiro, o Código contém a previsão de que as autoridades fiscais revisarão o lançamento tributário “quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação”, nos termos do artigo 149, inciso VII.
Entretanto, o mesmo Código Tributário Nacional não possui definição do que vem a ser dolo, fraude ou simulação – o que também ocorre com o conceito de “dissimulação” previsto no artigo 116, parágrafo único (ainda pendente de regulamentação, como visto).
Assim, recorre-se a uma norma de cunho interpretativo prevista – essa, sim – no Código Tributário Nacional para se buscar, noutras normas (inclusive de direito privado), a definição de dolo, fraude e simulação (artigos 109 e 110 do Código Tributário Nacional que, em linhas gerais, permitem a utilização de institutos de direito privado pelo direito tributário).
Nesse sentido, verificamos a seguir o alcance dessas definições:
- Uma lei ordinária que trata sobre matéria tributária, a Lei n.º 4.502/64, define “fraude” como a “ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir ou modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do impôsto devido a evitar ou diferir o seu pagamento.”.
- O Código Civil afirma que é “nulo o negócio jurídico quando o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;”, bem como que “Haverá simulação nos negócios jurídicos quando: aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; [ou] os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.” (artigos 166, III; e 167, parágrafo primeiro e incisos I, II e III).
Ou seja, para que haja a descaracterização de um ato ou negócio jurídico pelas autoridades fiscais no Brasil, é preciso recorrer a definições previstas na legislação vigente (inclusive não-tributária), não sendo possível, assim, que as autoridades fiscais descaracterizem uma conduta do contribuinte apenas com base no Código Tributário Nacional nem, muito menos, com base somente no artigo 116, parágrafo único.
Por fim, é preciso levar em conta que o ônus probatório da conduta antijurídica cabe à autoridade fiscal, não podendo ser fruto de mera presunção. Nesse contexto, é importante destacar que, embora seja do Fisco o ônus probatório em demonstrar a existência de uma conduta antijurídica, na prática, em virtude da pouca especificidade do lançamento tributário baseado em “ausência de propósito negocial” ou “substância econômica”, acaba o contribuinte tendo que produzir vasta e detalhada prova para infirmar o lançamento fiscal.
Conclusão
O ordenamento jurídico brasileiro não admite, em seus moldes atuais, que os atos e negócios jurídicos sejam descaracterizados pelas autoridades fiscais apenas com base em conceitos não definidos em lei, como propósito negocial ou substância econômica. Mesmo assim, não são raros os casos em que, identificando-se um suposto elemento subjetivo do contribuinte, as autoridades fiscais descaracterizam atos e negócios jurídicos por alegada abusividade. Nesse sentido, há diversos julgados do CARF publicados a partir do ano de 2004, quando o artigo 116, parágrafo único do Código Tributário Nacional entrou em vigor.
Embora a jurisprudência dos tribunais judiciais ainda não seja suficientemente firme para afastar esse risco por completo, a recente afirmação, pelo Supremo Tribunal Federal (ADI n.º 2.446), de que o artigo 116, parágrafo único do Código Tributário Nacional carece de regulamentação específica por lei ordinária, reforça essa limitação à atividade das autoridades fiscalizatórias.
Assim, para que haja a descaracterização, as autoridades fiscais brasileiras devem assumir o ônus de provar uma conduta antijurídica ao contribuinte, baseada na existência de dolo, fraude ou simulação nos termos não apenas descritos em legislação tributária, mas no ordenamento jurídico vigente como um todo.
Por fim, importa ressaltar que, sobrevindo regulamentação do artigo 116, parágrafo único do Código Tributário Nacional, o cenário supra descrito tende a ser alterado nos moldes da nova legislação.