Ao final de 2021, foi divulgado o modelo de regras para tributação global mínima de grandes multinacionais (proposta do Pilar 2 chamada GLOBE – Global Anti-Base Erosion)1Nota 1OECD, “Tax Challenges Arising from the Digitalisation of the Economy Global Anti-Base Erosion Model Rules (Pillar Two): Inclusive Framework on BEPS” (2021). a ser implementado pelo direito interno dos quase 140 países que formalmente aderiram ao acordo de outubro do mesmo ano.2Nota 2OECD, “Statement on a Two-Pillar Solution to Address the Tax Challenges Arising from the Digitalisation of the Economy” (8 out. 2021). Desde então, um vigoroso debate tem sido travado entre advogados, acadêmicos e outros analistas da comunidade tributarista internacional. O grande enfoque desse debate é a compatibilidade da chamada regra de lucros sub-tributados (undertaxed profits rule – UTPR) com o direito internacional (incluindo tanto tratados tributários quanto normas costumeiras), bem como ordenamentos jurídicos domésticos (em especial, as Constituições de alguns países).
Neste breve comentário, eu explico a lógica por detrás do modelo GLOBE e como seu intricado sistema de regras deve ser aplicado. Para facilitar a compreensão, utilizo-me de uma metáfora sobre interruptores ordenados em série, os quais desativam uns aos outros, alternando para realizar um histórico princípio implícito ao sistema tributário internacional que denomino de “use ou perca” (use it or lose it). Focando em seguida na UTPR, esclareço por que, dentre todas as regras propostas, é a que tem atraído maiores críticas, ainda que essas críticas careçam, em grande parte, de uma fundamentação jurídica robusta (seja nas fontes formais do direito internacional público, seja na doutrina especializada em tributação internacional).3Nota 3Para uma análise compreensiva com base na literatura existente, cf. Tarcísio Diniz Magalhães & Allison Christians, “Global Tax Reform and Mythical Internatioanl Law” (janeiro 2023).
Se você não tributar, eu tributo
Para entender o funcionamento da UTPR, é preciso contextualizá-la dentro do esquema geral de regras do GLOBE. Para tanto, vale visualizar a estrutura como uma série ordenada de quatro interruptores, cada qual apoiando os demais para alcançar a alíquota mínima efetiva de 15 por cento acordada entre os Estados-partes. Quando um interruptor é acionado, os demais automaticamente desligam. A efetividade do esquema como um todo depende de cada um poder ser desativado por outros.
O interruptor principal é a regra de inclusão de renda (income inclusion rule), mas esta é desligada quando um país da fonte impõe um imposto complementar doméstico (qualified domestic minimum top-up tax) que garanta o pagamento efetivo dos 15 por cento mínimos. Quaisquer desses dois mecanismos, porém, desativa a UTPR. Há, por fim, a regra de sujeição à tributação (subject-to-tax rule), a qual é a única veiculada em tratado, e não em legislação doméstica, como é o caso das demais. Apesar de prioritária, esta regra só eleva a tributação até 9 por cento, o que significa que ela desliga as outras apenas parcialmente. De qualquer modo, a UTPR é o último interruptor dentro do esquema, só sendo acionado quando nenhuma das outras jurisdições envolvidas pela multinacional tributa suficientemente.
Operando em conjunto, essas regras estabelecem um sistema de garantiasinterligadas que sinalizam compromissos a todos os países participantes do esquema de que, se um não tributar, outro o fará. Sem tais garantias, a lógica da concorrência tributária impediria as partes de implementar a visada tributação mínima.
Apesar da inovação do modelo, suas regras não deveriam causar grandes surpresas a quem acompanha com atenção como o direito tributário internacional vem se desenvolvendo ao longo do último século. Em 1937, por exemplo, os Estados Unidos adotaram regras para tributar acionistas americanos em relação à renda auferida por suas holdings pessoais estrangeiras, implementando um dos primeiros modelos tributários do mundo pautado na ideia de “use ou perca”. Esse princípio rege uma situação em que um país só faz uso do seu poder de tributar se outro não o fizer antes. Quando a renda é finalmente tributada, o país que não agiu quando podia perde a chance de fazê-lo. Do contrário, haveria dupla tributação, o que seria contrário à lógica do sistema.
O princípio do “use ou perca” foi reforçado em 1962, quando os Estados Unidos promulgaram, pela primeira vez na história, um regime para tributar, nas mãos de residentes, a renda de empresas controladas estrangeiras (controlled foreign corporations – CFC). Quando adotado, o regime foi visto por muitos como incompatível com ideias básicas sobre a personalidade jurídica distinta entre entidades corporativas, os limites jurisdicionais para a tributação nacional, assim como suposições relativa à origem e fonte da renda estrangeira. Comentaristas à época descreviam uma “cascata de protestos” pautada em todo tipo de argumento jurídico, político e econômico.4Nota 4Cf. Michael G. Beemer, “Revenue Act of 1962 and United States Treaty Obligations”, 20 Tax L. Rev. 125 (1964). Dentre os maiores críticos, estavam advogados e empresários, o quais acusavam o novel regramento de violar tratados tributários; ferir a reputação dos Estados Unidos perante a comunidade internacional; incentivar retaliação por parte de parceiros comerciais; bem como afetar negativamente empresas atuando no exterior e, consequentemente, a economia estadunidense.
Apesar de todas essas críticas, os regimes CFC se tornaram prática comum entre os mais diversos países do mundo: além dos Estados Unidos, regras parecidas foram adotados no Canadá e Alemanha em 1972, no Japão em 1978, na França em 1980, na Nova Zelândia em 1988, na Austrália e Reino Unido em 1990, e em muitos outros, incluindo potências emergentes como Brasil, China, Rússia e África do Sul, e todos os membros da União Europeia.5Nota 5Cf. Brian J. Arnold, “The Evolution of Controlled Foreign Corporation Rules and Beyond”, 73:12 Bull. Int’l Tax’n 631 (2019).
De pagamentos sub-tributados a lucros sub-tributados
Em documentos passados referentes ao Pilar 2, a abreviatura UTPR se referia a pagamentos sub-tributados,6Nota 6Cf., e.g.,OECD, “Tax Challenges Arising from Digitalisation – Report on Pillar Two Blueprint: Inclusive Framework on BEPS” (2020). em vez de lucros sub-tributados, como a regra é hoje conhecida. A funcionalidade é a mesma: em ambos os formatos, a UTPR serve de backstop final para as demais regras do GLOBE. Na prática, ao mudar de pagamentos para lucros, a nova UTPR ampliou o conjunto de países participantes do GLOBE que pode coletar a diferença entre a alíquota efetiva paga por uma entidade constituinte de uma grande multinacional sob regime de baixa tributação e a alíquota global mínima acordada de 15 por cento.
Com uma UTPR focada em pagamentos, a jurisdição da qual uma entidade constituinte faz um pagamento para o exterior é a única que pode cobrar o imposto complementar (top-up tax). Isso pode ser feito negando-se parte da dedução do pagamento em face da renda da entidade pagante ou implementando-se uma medida equivalente, como, por exemplo, aumentando a retenção na fonte. Diferentemente, com uma UTPR focada em lucros, qualquer país que hospeda uma entidade da multinacional pode coletar o imposto complementar, desde que uma regra de inclusão de renda ou um imposto doméstico mínimo não faça isso antes.
O efeito geral é mudar a cobrança do imposto complementar da jurisdição de nível superior que se nega a fazê-lo para basicamente qualquer outra jurisdição na cadeia de empresas que formam o grupo multinacional. Por exemplo, imagine uma estrutura simples de três entidades e três países. A matriz (Empresa A) está no País A, o qual não adota regras do GLOBE (ou, pelo menos, não tem uma regra de inclusão de renda). Uma das filiais (Empresa B) está no País B, onde a alíquota efetiva é inferior a 15 por cento. A outra filial (Empresa C) está no País C, o qual tem alíquota efetiva superior a 15 por cento e adota regras do GLOBE (especialmente, a UTPR). Diante da relutância do País B em tributar a Empresa B em pelo menos 15 por cento, somada à relutância do País A em cobrar o imposto complementar com uma regra de inclusão de renda, a UTPR do País C é ativada.
Sob esse regime, o País C pode cobrar diretamente da Empresa C o valor não pago pela Empresa B. Isso pode ser feito por meio de cancelamento ou recusa de uma dedução a que a Empresa C normalmente faria jus ou qualquer outra medida, incluindo a criação de uma “despesa tributária adicional em dinheiro” para a Empresa C. O valor deve corresponder ao que a Empresa B ficou aquém em relação aos 15 por cento mínimos, e que não foram cobrados nem pelo País B (por exemplo, com um imposto complementar doméstico) nem pelo País A (via regra de inclusão de renda). Como, no exemplo, o País C é a única outra jurisdição envolvida pela estrutura da multinacional, o valor do imposto complementar pode, então, ser inteiramente coletado pelo País C.
A situação é um pouco mais complicada quando há mais de uma jurisdição dentro da estrutura da multinacional disposta a cobrar o imposto complementar. Se, no mesmo exemplo, um País D (que hospeda outra filial) também tributar acima de 15 por cento e também tiver uma UTPR, o valor total do imposto complementar que a Empresa B não pagou nem ao País B nem ao País A é dividido entre os Países C e D e cobrado de suas respetivas empresas locais. A alocação entre essas duas jurisdições se dá com base em uma fórmula que usa o número de empregados e o valor contábil líquido de ativos tangíveis em cada uma.
Em última instância, a expansão do modelo da UTPR para além de pagamentos entre partes visa trazer maiores garantias para que o GLOBE supere a lógica perversa da race to the bottom. De acordo com o novo formato, a UTPR incide mesmo quando todas as outras jurisdições que abrigam entidades constituintes de um grande grupo multinacional se recusam a cooperar, independentemente de existir remessa direta entre aquelas entidades. Nesse sentido, a nova UTPR melhor implementa o princípio “use ou perca”. Qualquer jurisdição envolvida pode agora cobrar o imposto complementar se as demais falharem.
Críticas mal-direcionadas
Críticos da UTPR basicamente reclamam que a regra trata uma subsidiária doméstica como se não fosse distinta de suas entidades irmãs no exterior, ignorando o fato de que inexiste relação de controle entre elas e seus rendimentos. Segundo essa lógica, a UTPR seria problemática pois permitiria que certos países tributassem rendas oriundas de fontes que não estão diretamente vinculadas a suas jurisdições territoriais. A situação é ilustrada pelo exemplo acima, em que o País C, apesar de normalmente tributar acima da alíquota global mínima, tem de impor um imposto extra sobre uma entidade constituinte em seu território porque a entidade constituinte do País B tem lucros sub-tributados.
Alguns chegam a comparar essa situação a de um indivíduo sendo tributado em relação a rendimentos de familiares residentes no estrangeiro. Ocorre que um grupo de empresas afiliadas não tem nada a ver com um grupo familiar. Empresas não estão vinculadas ao mundo físico: sua existência decorre de uma ficção jurídica que lhes permite expandir, multiplicar, fundir e separar, criar e eliminar membros, reorganizar suas atividades e, ao fazê-lo, distribuir sua renda entre jurisdições de alta e baixa tributação, assim obtendo vantagens econômicas que não estão disponíveis a seres humanos. É precisamente porque grupos empresariais não se assemelham em nada às pessoas naturais que a erosão de bases tributárias via transferência de lucros têm sido um enorme desafio para sistemas tributários mundiais, e o que acabou motivando todo o projeto GLOBE.
Parece certo que o GLOBE sofre de inúmeros problemas estruturais, sobretudo no que tange à alta complexidade de seu regramento e o potencial impacto de sua implementação, em termos de alocação de receitas tributárias e investimentos entre países em diferentes posições geoeconômicas e estágios de desenvolvimento. Entretanto, a solução desses problemas não está em tentar erigir barreiras jurídicas pautadas em analogias incoerentes entre indivíduos e empresas multinacionais, com o objetivo de desestabilizar ou retardar a implementação do regime de tributação global mínima acordado entre países. Do contrário, esforços deveriam se concentrar em análises que busquem garantir que o projeto não gere benefícios apenas a algumas nações.