Introdução
A expansão do uso dos criptoativos torna cada vez mais necessária a disciplina jurídica do referido fenômeno pelo mundo. Nesse contexto, no Brasil, o Senado Federal aprovou no dia 26 de abril de 2022 o Projeto de Lei nº 4401/2021, que busca disciplinar as empresas prestadoras de serviços de ativos virtuais. O Projeto, agora, volta para a Câmara dos Deputados, Casa Iniciadora da Proposta.
A definição de ativo virtual está no artigo 3º da referida Lei: Para os efeitos desta Lei, considera-se ativo virtual a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para a realização de pagamentos ou com o propósito de investimento, não incluídos: I – moeda nacional e moedas estrangeiras; II – moeda eletrônica, nos termos da Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013; III – instrumentos que provejam ao seu titular acesso a produtos ou serviços especificados ou a benefício proveniente desses produtos ou serviços, a exemplo de pontos e recompensas de programas de fidelidade; e IV – representações de ativos cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação esteja prevista em lei ou regulamento, a exemplo de valores mobiliários e de ativos financeiros. Seu parágrafo único determina, ainda, que “Competirá ao órgão ou à entidade da administração pública federal indicada em ato do Poder Executivo estabelecer quais serão os ativos financeiros regulados, para fins desta Lei.”
Assim, considerando que dificilmente haverá alterações substanciais no texto, o presente artigo se propõe a analisar como os Non Fungible Tokens (NFTs) se inserem na disciplina jurídica veiculada na referida Proposta Legislativa e quais as respectivas consequências jurídico-tributárias dessa possível inserção.
Para tanto, é preciso, antes, verificar aspectos gerais do PL 4401/2021, para concluir que a disciplina jurídica por ele proposta (i) tem por foco o funcionamento das empresas prestadoras de serviços de ativos virtuais, (ii)contempla, do ponto de vista técnico, os tokens não fungíveis, (iii) não aborda de maneira detalhada a tributação das operações envolvendo essa espécie de token, e, assim, (iv)não enfrenta o cenário de insegurança jurídica acerca da tributação das transações com os tokens infungíveis.
Aspectos gerais do Projeto de Lei nº4401/2021
É preciso destacar que o Projeto de Lei nº 4401/2021 aborda disciplina jurídica concentrada nas empresas prestadoras de serviços de ativos virtuais, ao propor a fixação de diretrizes de funcionamento dessas empresas (art. 4º), definir o conceito de prestadora de serviços de ativos virtuais (art. 5º), inserir no Código penal o crime de fraude em prestação de serviços de ativos virtuais (art. 10), equiparar à instituição financeira a pessoa física ou jurídica que oferece serviços referentes a operações com ativos virtuais (art. 11), incluir as prestadoras de serviços de ativos virtuais no rol de empresas submetidas às obrigações dos arts. 10 e 11 da Lei 9.613/1998 (art. 12), prever a aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas operações realizadas no mercado de ativos virtuais, no que couber, e propor benefício fiscal consistente na redução a zero das alíquotas da Contribuição para o PIS/PASEP, COFINS, Imposto de Importação (II), e Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), incidentes sobre “máquinas e ferramentas destinadas a empreendimentos que utilizarem em suas atividades 100% (cem por cento) de sua necessidade de energia elétrica de fontes renováveis e que neutralizem 100% (cem por cento) das emissões de gases de efeito estufa (GEE) oriundas dessas atividades” (art. 15).
Por outro lado, o PL em apreço, ao definir o conceito de ativo virtual de maneira muito ampla e delegar a órgão ou entidade da Administração Pública Federal a atribuição de estabelecer quais serão os ativos disciplinados para fins de aplicação da futura Lei a ser publicada (art. 3º, §1º, do PL), abre margem para que tal definição contemple os NFTs, e não enfrenta o atual cenário de insegurança jurídica decorrente da ausência de uma disciplina jurídica específica para a tributação das transações envolvendo os tokens infungíveis.
Possibilidade de o conceito de ativo virtual abranger os NFTs
Embora o relator, durante a votação do Projeto de Lei nº 4401/2021, tenha se manifestado no sentido de que os NFTs não são contemplados pela Proposta1Nota 1SENADO FEDERAL. “Projeto de Lei n° 4401, de 2021”, p.10., e de que caberá ao órgão ou entidade da Administração Pública Federal enumerar os ativos virtuais que serão disciplinados pela futura Lei decorrente da Projeto, o fato é que os termos integrantes da definição do conceito de ativos virtuais do PL em estudo são muito amplos, e albergam as moedas virtuais, as criptomoedas e os tokens, aí incluídos os NFTs.
A propósito, todas essas figuras se amoldam no conceito de “representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento”, e todas elas não se confundem com as moedas fiduciárias (art. 3º, I, do PL), com as moeda eletrônicas (art. 3º, II, do PL), com os “instrumentos que provejam ao seu titular acesso a produtos ou serviços especificados ou a benefício proveniente desses produtos ou serviços” (art. 3º, III, do PL), nem com “representações de ativos cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação esteja prevista em lei ou regulamento” (art. 3º, IV, do PL).
Dessa forma, do ponto de vista técnico, a definição do conceito de ativos virtuais acaba por abranger os tokens não fungíveis, pois esses se consubstanciam em instrumentos que, emitidos no âmbito da tecnologia Blockchain,2Nota 2REGNER, Ferdinand; SCHWEIZER, André; URBACH, Nils. “NFTs in Practice – Non-Fungible Tokens as Core Component of a Blockchain-based Event Ticketing Application”. atestam a originalidade de determinado bem ou coisa,3Nota 3SHARMA, Rakesh; CLEMON, Doretha; RATHBURN, Pete. “Non-Fungible Token (NFT) Definition”. Aqui é importante ressaltar que nos alinhamos à proposta de Caio Mario da Silva Pereira (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de /direito Civil. Atual. Maria Celina Bodin de Moraes. 28 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015), segundo a qual bem jurídico em sentido amplo compreende “tudo que pode ser objeto da relação jurídica, sem distinção da materialidade ou da patrimonialidade” (p.337). Por sua vez, o bem jurídico como ativo do patrimônio, pode ser definido como “elemento de riqueza suscetível de apropriação” (p.337), e pode ser classificado em (i)bem em sentido estrito, elemento de riqueza imaterial e (ii)coisa, elemento de riqueza material (bem material) (p.338). ou seja, não podem ser substituídos pela mesma espécie, qualidade e quantidade, representam digitalmente um valor, podem ser negociados eletronicamente e também podem ser utilizados com o propósito de investimento.
O problema da manutenção do atual cenário de insegurança jurídica
Essa possibilidade de inserção dos tokens infungíveis no âmbito da noção de ativos virtuais conduz à questão da ausência de uma disciplina jurídica específica para fins de definição da natureza jurídica dessa espécie de token e, consequentemente, de tributação dessas novas tecnologias, o que gera insegurança jurídica e uma provável perda de arrecadação de tributos, já que o mercado dessa espécie de token cresceu 20 (vinte) vezes em 2021, e a expectativa é de que, em 2022, movimente mais de 2 bilhões de dólares somente no ramo esportivo, por exemplo.
No caso, considerando que o foco do PL são as prestadoras de serviços envolvendo ativos virtuais e levando em conta que o texto da Proposta delega a órgão ou entidade da Administração Pública Federal a atribuição de estabelecer quais serão os ativos disciplinados para fins de aplicação da futura Lei a ser publicada, a ausência de uma disciplina jurídica clara a respeito dos NFTs acaba por manter uma incerteza quanto à sua classificação, já que podem se amoldar aos conceitos de (i)ativos virtuais, (ii) criptoativos, ou (iii) instrumentos que comprovam o direito de propriedade que recai sobre bens ou coisas.
Nesse quadro, se os tokens infungíveis forem considerados como espécies de ativos virtuais, nos termos do PL em apreço, isto é, os próprios tokens não fungíveis como bens em sentido estrito (imateriais), então é possível que o ganho de capital decorrente de suas operações atraia a incidência do Imposto de Renda, com fundamento nas normas emanadas da Constituição Federal (art. 153, III)– mais precisamente em um conceito constitucional de renda como base tributável-,4Nota 4Segundo Luís Cesar Souza de Queiroz (QUEIROZ, Luís Cesar Souza de. Imposto sobre a renda: requisitos para uma tributação constitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Juírico,2016. 340p. ISBN 978-85-9524-003-2), o conceito constitucional de renda como base tributável pode ser compreendido, em síntese, como acréscimo de valor patrimonial verificado pelo resultado positivo da combinação de fatos acréscimos e fatos decréscimos necessariamente dedutíveis (ligados às necessidades vitais das pessoas), em certo período de tempo do Código Tributário Nacional (art. 43), e das Leis nº 8.981/1995 (art. 21) e 9.250/1995.
Do mesmo modo, se forem considerados criptoativos – expressão utilizada primeiramente pela Instrução Normativa da Receita Federal nº 1.888/2019, o qual igualmente abarca as noções de moeda virtual, criptomoeda e token-, suas transações serão tributadas via Imposto de Renda incidente sobre o ganho de capital, conforme atual orientação da Receita Federal, que, por meio do guia de “Imposto sobre a Renda da Pessoa Física – Perguntas e Respostas – 2022”, insere os NFTs no conceito de criptoativos, mais especificamente na Ficha Bens e Direitos (Grupo 08-Criptoativos), código 10.
Por outro lado, é possível entender o fenômeno dos tokens não fungíveis como instrumentos que representam ou comprovam o direito de propriedade que recai sobre determinado bem ou coisa. Desse modo, considerando que não se pode confundir o NFT com o bem ou coisa por ele representado,5Nota 5Contenido de la información emergente seria plenamente possível a incidência do ICMS sobre as operações envolvendo a titularidade de obras de arte, por se tratar de hipótese de “transmissão de direitos autorais materializados por meio de uma obra digital”,6Nota 6JOTA. “Os desafios da tributação de NFTs: criptoativos, obras de arte ou bens digitais?”. com a ressalva da possível aplicação do Convênio ICMS 59/91 do CONFAZ, que isenta do ICMS saídas de obra de arte que sejam decorrentes de operações realizadas pelo próprio autor das obras.7Nota 7Idem
Ainda no âmbito dessa hipótese, é possível vislumbrar a possibilidade de incidência de Imposto de Renda do ponto de vista da tributação corporativa.8Nota 8Idem
Essas múltiplas possibilidades de classificação e suas respectivas consequências jurídico-tributárias se traduzem no atual cenário de insegurança jurídica sobre a tributação dos NFTs, que não é modificado pela Proposta Legislativa em estudo.
Conclusão
Portanto, o Projeto de Lei nº 4401/2021 traz disciplina jurídica focada nas empresas prestadoras de serviços de ativos virtuais; a definição do conceito de ativo virtual veiculada na Proposta Legislativa em apreço pode abranger os tokens não fungíveis; o Projeto, ao não apresentar uma clara proposta para definição do conceito de Non Fungible Token, acaba por não encerrar o debate acerca da natureza jurídica dessa espécie de token, e, assim, não confronta o cenário de insegurança jurídica que paira sobre a tributação das transações envolvendo os tokens infungíveis.